Memória e esquecimento da cultura artística acreana
Abstract
Não sou daqueles que entende que tudo no campo da cultura deva ser de responsabilidade do Estado - alguns governos até preferem trazer para si o controle do mundo, inclusive o modo como devam pensar seus cidadãos – mas quando se fala de preservação de memória cultural penso que a conversa é outra. Em Estados, como o Acre, em que inexiste industria cultural que faça uso do produto artístico local como artefato importante tanto para o mercado da obra como da memória, a preocupação com a preservação da história artística do lugar deva ser, mais que nunca e desde sempre, de responsabilidade do poder público. Aqui o Estado, desta feita, deve ter o produto artístico local e a sua história como artigos importantes não para a mercancia mas para a cidadania (direitos culturais...), a liberdade de expressão e a valorização das manifestações culturais, digamos, próprias.
De fato, o papel do Estado, enquanto gestor da coisa pública, tem o dever básico de proteger e difundir o patrimônio cultural material e imaterial de seu povo. É claro que a sociedade, por suas organizações e indivíduos, as universidades e até o mercado cultural têm importância para a realização destes objetivos. Mas deixar somente nas suas mãos seria colocar em risco esta memória, tendo em vista as contingências em que tais serviços culturais ocorrem (quando ocorrem), e, fundamentalmente, as condições materiais, estrutura mesmo, para a sua realização, especialmente guarda, manutenção e condições de difusão para o acesso público.
Assim, instituir e manter politicas de memória alocando verbas, pessoas e estruturas públicas para o registro, guarda e manutenção do patrimônio cultural deve ser parte intrínseca de toda e qualquer politica de ação cultural dos governos. Já há previsão constitucional a fim de que, desta forma, eles se comportem. Existe já estruturas gerenciais como departamentos de patrimônio cultural previstos nos organogramas das secretarias e fundações de cultura. Vê-se casas de memórias, museus e bibliotecas apresentarem-se como equipamentos voltados para tais fins. Existem até conselhos institucionais, com a participação popular, orientados para estabelecer, junto com os poderes públicos, politicas de proteção patrimonial, material e imaterial, na área da cultura. Consta dos Planos de Cultura, etc. A questão é saber se têm funcionado. Tenho pra mim que não. Pelo menos quanto ao aspecto que aqui coloco, visto que não se vê atitudes governamentais no sentido sistemático (não falo de improvisos) do registro, da guarda, preservação e da difusão da nossa memória artística. A situação da memória musical, da história da música no Acre, é reveladora não só em relação a si mas ainda à situação das outras áreas das artes. A música aqui é exemplo.
Em Rio Branco, temos, nas últimas décadas, sofrido uma substancial perda na música acreana com a morte de representativos instrumentistas, interpretes e compositores da nossa canção contemporânea. Só para citar os mais conhecidos: Maestro Sandoval dos Anjos, Bararú, Zé Mão de Onça, Fernando Galo, Pranchão, Tião Natureza, Hélio Melo, Leo Nogueira, Diniz, Geraldo Leite, Franco Silva, Jorge Cardoso, Auricélio Guedes, Roberval... Certamente que estou esquecendo de outros, mas, como se encontra a situação, fácil mesmo é esquecer. Ora, ante a inexistência de politicas públicas de memória, o normal é reinar o esquecimento.
Observe que não estou nem falando da situação dos mortos-vivos: os vencidos pelo cansaço que dá fazer arte no Acre, aqueles que foram se ocupar de outra atividade e largaram suas obras, suas histórias, seus sonhos... e os que, embora ainda resistam, continuam, por alguma razão, alvo da indiferença, não sendo, natural e dolosamente, detectados pelo radar da “memória” oficial da cultura acreana... Não estou também chamando atenção para outras manifestações musicais que não se enquadram no formato artístico-popular, como as manifestações musicais indígenas, as chamadas eruditas, as religiosas, etc, que possam, de alguma forma, se enquadrar como manifestações culturais locais ou que participam da nossa história.
O que ficou desses produtores, suas histórias de vida artística, suas obras, aonde podemos acessar suas memórias, que são a memória cultural do lugar em que vivemos? Qual é a história da música acreana, da educação musical no Acre? Aonde se pode acessar à produção musical do Acre? Estas perguntas remetem automaticamente a outras: o que o Estado, por meios de suas fundações culturais, com seus setores de patrimônio cultural e conselhos de patrimônio e de cultura, tem feito no sentido de não deixar que continuemos nesta situação em que impera a politica pública do esquecimento, não só em relação à música mas, também, às outras artes? O que falta para que tenhamos politica de memória artística no Acre?
Se não basta a constatação, segue a proposição, aos setores institucionais da cultura no Acre, para ações pertinentes óbvias: implantação de uma Politica Pública de Memória da Cultura Artística Acreana, com a criação imediata do Museu da Imagem e do Som do Acre. Tudo pelo fim da politica pública do esquecimento, esta que impera enquanto ficarmos circunscrito, tão-só, ao lamento da morte de mais um artista, o que equivale não só aceitar também a sua morte para a história, como ainda a interdição, a todos, no presente e no futuro, do direito de acesso à memória da cultura artística acreana.